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CONTOS E CRÔNICAS

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MASTURBAÇÃO FILOSÓFICA

 

            Resolvi escrever sobre assunto de menor relevância em nossa vida.

             Insignificante e chato, age como sonífero em noites de insônia: filosofia.

            Dá para perceber que há aqui um fino senso de ironia?

 

            Segundo o dicionário Aurélio, filosofia é, entre outras coisas:

                     -estudo que se caracteriza pela intenção de ampliar, incessantemente, a compreensão da realidade.

 

            E o que diz o mesmo dicionário sobre o que é ser filósofo?

                     - aquele que procede sempre com sabedoria e reflexão, que segue uma filosofia de vida.

                     - aquele que vive tranqüilo e indiferente aos preconceitos e convenções sociais.

 

            Quem de nós procede, usualmente, com “sabedoria e reflexão”? No duro?

            Quem de nós tem, efetivamente, uma filosofia de vida?

            Quem de nós vive indiferente aos preconceitos e convenções?

 

            Claro que nunca vamos admitir que não refletimos ou não seguimos uma filosofia existencial, uma meta filosófica. E quanto aos preconceitos?

       Somos pródigos em defender pretensas virtudes, afirmando sermos amigos de gays, negros e outros grupos discriminados, desde que todo o relacionamento se desenvolva fora do âmbito de nossa família.

             Quantos se orgulham em ter pai, mãe, irmã, irmão ou filhos gays?

            Não tenho a intenção de provocar incômodo ou irritação.

          Todos têm o direito de discernir sobre o mundo, as coisas e pessoas nele contidas, da maneira que lhes aprouver, e a isso se deu o nome de “livre arbítrio”, considerada condição sagrada, delegada aos humanos pela divindade. É preciso respeitar o direito de cada um pensar e se expressar com total liberdade, mas há um limite. Esse limite é a liberdade dos circunstantes, dos que nos são próximos, além dos animais e da própria natureza, que forma todo o ecossistema que nos sustenta e mantem vivos a todos. Quando restringimos a liberdade do próximo, dificultando sua sobrevivência; se o constrangemos, caluniamos, menosprezamos, destruímos, parcial ou totalmente um habitat, poluimos, desperdiçamos bens e recursos, zombamos, tripudiamos, abusamos, ignoramos ou deixamos que outros façam tais coisas sem reagir (sendo omissos), ultrapassamos o limite do livre arbítrio e nos tornamos malfeitores.

            Aliás, sabe o que é maniqueísmo?

             Provavelmente não, mas você, posso apostar, é maniqueísta!

            Estamos acostumados a caracterizar o bem e o mal como forças opostas e bem definidas, em duelo constante.

             Mas em nossa realidade, quem é bom ou mau?

             Você é pessoa boa ou má?

             Conhece alguém, absolutamente, mau ou bom?

            Maniqueísmo é um princípio doutrinário que só admite a existência do bem e mal absolutos. Segundo esse principio não existe meio termo e ninguém pode ser bonzinho e fazer coisas ruins (às vezes) ou vice versa. Na prática, sabemos que ninguém é totalmente bom ou mau e que nosso mundo evolui, mas ainda é um lugar de muita selvageria. Nosso aspecto mais selvagem, principalmente caracterizado pela violência e desunião, está mais vivamente presente em locais de intensos conflitos, mas também existe em nosso íntimo, mesmo que consigamos esconder esse lado feio e obscuro de nosso modo de ser.

            Não somos bons ou maus, mas temos condições de administrar nosso jeito de agir, de modo a enxergar melhor a realidade, percebendo que somos todos farinha do mesmo saco, mesmo tendo tanta diferença aparente. Nenhum de nós tem a solução mágica para os problemas sociais, por exemplo, porque a solução não pode ser encontrada senão no íntimo de cada um. Se não melhorarmos nossas atitudes, nada melhorará à nossa volta. Cada vez que jogamos um papelzinho no chão, cuspimos, entramos numa contramão, subornamos, furamos fila, damos uma de espertos, estamos contribuindo para a piora do mundo, do país, da região, do bairro, da nossa casa e nossa família.

            Temos o exemplo de um grupo de pessoas que está administrando o nosso país e atravessa grande crise, por ter agido de modo controverso, que ainda que possa não ser totalmente ilegal é prejudicial à nação e configura um mau exemplo à sociedade. Não se pode dizer serem pessoas más, mas crendo que contribuíam para grande e positivo evento, perderam-se nos detalhes e procedimentos simples, do dia a dia. Mesmo os que não foram denunciados e conseguiram se safar das investigações têm consciência de que agiram mal e, mesmo que bem intencionados, contribuíram para a degradação do poder.

             Apesar da roda viva que nos envolve, em nossa luta diária por subsistência e melhoria de qualidade de vida, temos de refletir, meditar, filosofar, mas sem o jeito afetado das masturbações filosóficas sem sentido, que se caracterizam por citações de grandes mestres e defesa de credos religiosos, dogmas, doutrinas e crenças pessoais. A verdade nunca se impõe, mas sempre se submete.

              A verdade é passiva, doce, benevolente, mansa, serena, universal.

            Se a sua “verdade pessoal” (se é que isso existe), difere em qualquer aspecto da verdade universal (e única), então é mentira (bem elaborada). Quem olha só o próprio umbigo, lamentando ou dramatizando infortúnios e dificuldades, sempre porá seus interesses acima de qualquer circunstância, e não hesitará em praticar pequenos ou grandes deslizes, para atingir objetivos pessoais.

             Filosofar é sentir-se parte do todo e perceber que cada espirro afeta a harmonia do planeta e interfere na situação de um bairro, cidade ou país. Cada pequeno gesto, positivo ou negativo, tem sempre implicações amplas, mesmo que você e os demais à sua volta não percebam isso, claramente.

              Você é livre para transformar ou não seu presente em exemplo futuro.

         Lembre que nosso planeta só sustenta nossa vida à custa do equilíbrio dos elementos que o compõem. Esse equilíbrio só pode ser mantido se conquistarmos a sonhada harmonia social, que só será atingida e mantida se cada um de nós tiver consciência da própria importância em todo esse processo.

NEILOR E CACOETE

 

           Eram dois irmãos!

           Fisionomia bem diferente, idades próximas, jeito tímido, sorriso aberto.

           Assemelhavam-se, principalmente, nas maneiras simplórias e cordatas.

          Cresceram em cidade grande do interior paulista, aproveitando bem a adolescência,  pescando, caçando e aprontando muitas artes nas terras que cercavam o morro do curtume, onde ainda se podiam ver, na época, ruidosas seriemas. Naquele bucólico recanto viveram aventuras felizes. Eram, porém, curtos de raciocínio e avessos ao estudo, abandonando a escola em tenra idade, antes do término do primeiro grau. Quando crianças ou adolescentes, as diabruras e a falta de discernimento que lhes caracterizava as atitudes eram vistas com simpatia, mas à medida que se tornavam adultos, o que antes soava bonitinho, se tornava, gradativamente, insólito e patético. Recordar episódios protagonizados por esses dois sempre me fez rir, ainda que determinadas situações tenham sido constrangedoras ou problemáticas. Mas que seja o leitor, através deste relato, convidado a um tour nostálgico, onde a pena relembra um pouco do que essa dupla aprontou em tempos idos.

 

          Quando criança, Cacoete adorava bolinhas de gude, mas não era hábil no jogo e sempre perdia. Uma vez, sem dinheiro para comprar mais bolas, resolveu pegar as esferas de aço dos rolamentos que o pai, mecânico de uma empresa, montava em casa. Ao aparecer com aquelas bolas pesadas e bem reluzentes, fez sucesso, mas em pouco tempo perdeu todas no jogo. Seu pai, ao perceber a falta do material, descobriu logo o autor do prejuízo e determinou que ele passaria a comer só feijão, até que devolvesse o que pegou. Ocorre que o rapaz detestava feijão, e quando o comia não parava de soltar puns bem fedidos. Após engolir alguns pratos com dificuldade e determinado a recuperar o que perdera no jogo, foi até a casa de seus amigos e pediu as bolas de volta. Como se negassem a devolver, ficou plantado na sala de cada um, soltando seus gases fedorentos, até a família obrigá-los a entregá-las, sob pena de expulsar todos das casas.

   

          Neilor, mais novo e apatetado, tinha sono pesado, e quando os amigos descobriram, resolveram aprontar, só não viram que a possibilidade da peraltice provocar um desastre era grande, sendo o garoto como era, e... aconteceu o pior.

          Uma menina que morava ali perto, chamada Maria Quitéria, formosa de corpo e tão desprovida de intelecto quanto nosso herói, tinha como pai um evangélico ortodoxo, que a educava para ser pastora. Ginja (seu apelido), é claro, não compartilhava das expectativas paternas, mas mantinha postura firme, e não se deixava seduzir por ninguém. Certa noite, a turma se reuniu numa casa em construção, para cantar e tocar violão. Deram de beber aos dois (ela e ele), e não demorou em que caíssem, ambos, num sono profundo. Deitaram-nos juntos num papelão, e os cobriram com sacos de pano. Logo os acordaram aos berros, dizendo que não agüentavam mais ouvir gemidos. Que parassem com a sem-vergonhice.

          Eles abriram os olhos, se olharam longamente, levantaram em silêncio, deram as mãos e saíram. No dia seguinte, a turma ficou sabendo que Neilor fora até a casa da menina, dissera ao pai dela que a havia engravidado e se dispôs ao casamento, para reparar o ato.  Não adiantou dizer que tudo fora uma brincadeira. Casaram-se em um mês e se separaram em um ano. Não tiveram filhos.

         

             Cacoete era virulentamente homofóbico.

             Não era agressivo, mas evitava até ficar perto de quem considerava efeminado.

            Ao voltar de um baile em cidade vizinha, contou aos amigos, com euforia nunca vista antes, que conseguira transar com menina linda, logo de cara (duas coisas inéditas para ele: transar no primeiro encontro, e com uma menina linda). Como ninguém acreditou, disse poder provar, ao revelar fotos que tirara com ela (naquele tempo ainda era preciso revelar as fotos). Enquanto não as tinha, contava como tinha sido bom, embora ela estivesse gripada (por esse motivo, a voz rouca e grave) e menstruada (o sexo tinha sido, pois, alternativo). Quando um dos presentes começou a achar a coisa esquisita, ele se irritou, dizendo sentirem inveja, pois estivera com uma garota alta (aliás, mais alta que ele) e vistosa (tão vistosa, que seu ombro competia com o de Cacoete). Diante de mais esses detalhes, todos duvidaram da feminilidade da “gatinha” e caçoaram do amigo, que furioso, só retornou com as fotos na mão, após dois dias. Ao observá-las, alguém comentou que a menina tinha gogó.  

            Cacoete olhou bem, baixou a cabeça e nunca mais tocou no assunto.    

 

          Neilor tentou trabalhar em escritório como contínuo, tendo como principal atividade ir aos bancos, repartições e empresas. Durante os dois primeiros dias de trabalho tinha feito menos da metade do serviço que lhe fora confiado. Descontente, seu patrão o chamou e disse que não entendia porque ele não conseguira executar todo o trabalho. Respondeu que se perdera e não conseguira encontrar os bancos. O homem arregalou os olhos e lhe disse que todas as agências bancárias da cidade ficavam na mesma rua, aliás, a rua principal, chamada Sete de Setembro.

             O rapaz olhava para seu chefe e nada dizia.

          - Você sabe que a Sete de Setembro é a rua central da cidade, Neilor?

          - Não senhor!

          - Você nasceu e viveu sempre aqui?

          - Sim senhor!

             O homem, intrigado, coçou a cabeça e pegou o cadastro do funcionário.

           - Você sabe onde fica a rua João Poena Neves?

          - Dessa eu já ouvi falar. Deixa ver se me lembro!

          Alguns arrastados minutos de silêncio depois, sem obter uma resposta, o patrão lhe entregou a ficha de cadastro e o dispensou no mesmo instante, pedindo que não voltasse. Na ficha constava o endereço de sua casa: Rua João Poena Neves, 01. A casa de Neilor era a primeira da rua. Ali nascera e crescera, mas não conseguia se localizar, devidamente, pois trabalhava de maneira misteriosa, sua pitoresca mente.

 

           Na última vez em que tive notícia a respeito desses singulares personagens, estavam, ambos, dedicados a conquistar a amizade de um casal de argentinos que estava residindo, temporariamente, nas proximidades de sua casa, porque tencionavam conseguir que os gringos os levassem para Nova York, que em seus delírios, deveria se situar em algum lugar, entre Buenos Aires e Foz do Iguaçu.

           Não sei dizer se tiveram êxito em seus propósitos.

- NÃO QUERO MORRER !

 

            Parece óbvia e comum a todos os mortais, tal afirmativa. Será ?

            Há quem diga que não teme encarar a morte.

             São os que se acreditam venturosos e bem resolvidos com o eterno, com o mundo que se situa em dimensão etérea, que não nos é facultado sentir ou vislumbrar. Mas mesmo entre esses, apesar da alardeada crença no amparo divino, já percebi muito medo, escondidinho nas entranhas.

            Eu não temo o desconhecido!

           Não temo realidades paradimensionais, onde podem ocorrer julgamentos sobre atos executados nesta dimensão física. Mesmo porque procuro  agir de acordo com minha consciência, e se erro é porque vacilo ou me sinto inseguro, quanto à atitude mais adequada, sob determinada circunstância.

            Mas temo o instante da morte!

          Dificilmente parece serena a transição desta para outra paragem do universo, dimensão, realidade, ou situação. Geralmente, tal instante, que todos vamos viver (expressão paradoxal, não?), indefectívelmente, parece brusco, asfixiante, cruel. E após isso, o silêncio absoluto e definitivo.

           Se há um caráter lógico, que preside a harmonia sideral e permeia os caminhos e devaneios das humanidades que, eventualmente, dividam o éter universal, não posso temer o que desconheço, porque devo estar sendo amparado, mesmo que desconheça o mecanismo e os mentores. Mas é difícil encarar o momento da morte e o que encerra o fatídico instante, por isso costumamos brincar e dizer anedotas em velórios.

            Há outro medo que me assalta o íntimo: o de estar fazendo tudo errado.

            Tive muitos momentos diferentes, ao longo desta minha existência:

             - Criança ainda, era arredio e introspectivo. Preferia a leitura às brincadeiras de rua.

             - Pubescente, despertei para o sexo, com o moralismo e a repressão que o envolviam.

             - Adolescente e ledor contumaz, sentia-me superior aos iletrados circunstantes.

             - Jovem adulto, acreditei ser um missionário, uma espécie de messias ou anjo.

             Traduzindo: passei de pateta a pernóstico.

             Freqüentei várias religiões, buscando fundamentos e verdades, crendo que em alguma estaria escondido o caminho único e inconfundível para a divindade. E foi em meio a esse afã obstinado de entrega mística que mais troquei os pés pelas mãos. Cria estar imbuído da verdade, e que o mundo estava dividido entre escolhidos e pecadores ou perdidos, que a rigidez moral seria a melhor arma contra a insensatez da turba. Não percebi que a maior (e gigantesca) insensatez era a minha, crendo que a verdade (fosse qual fosse) pudesse estar em um único lugar, em um único sentido religioso, escondida aqui ou ali, com esta ou aquela tendência dogmática. Em minha pretensão juvenil, em minha arrogância intelectual e contando com as facilidades de boa articulação, que me destacava dos demais, errei feio em pensar que as pessoas precisavam de tutores, e que eu era um dos que se capacitavam a levar a termo tal tutela. Daí em diante, perdi anos tentando “ensinar” aos outros o que ainda não havia aprendido ou vivenciado: a humildade. Dei palestras, ministrei seminários, workshops, monitorei estudos iniciáticos, organizei e coordenei trabalhos de pesquisa filosófica e espiritualista. De um extremo ao outro, mergulhei em diversas tendências e fui fundo.

              Não me contentava em somente freqüentar cultos e sessões de estudo.

              Participava de tudo que aparecia pela frente e entrava de corpo e alma.

              Mas o medo da morte insistia em me fazer companhia.

              Dizem que quanto mais medo da lagartixa temos, mais ela aparece em casa.

           O mesmo ocorria em relação aos meus temores. Sempre tinha de comparecer a algum tipo de cerimônia fúnebre, visitar algum enfermo ou acompanhar a agonia de alguém, e, por mais que fugisse desses tétricos compromissos, era difícil escapar. Incomodavam-me, nessas ocasiões, a agonia, o mal estar, o desespero, a choradeira e a ritualística arrastada das exéquias, mesmo sabendo que a maioria dos presentes não ligava a mínima e ia por simples obrigação, tanto que muitos atacavam lanches à disposição e despejavam um cabedal infindável de intrigas e anedotas.

              Além disso, crescia um vazio em meu íntimo.

              Eu chorava até de cachorro perdido em filme da sessão da tarde.

            Palestrava, compunha, cantava, interpretava textos e desempenhava bem qualquer atividade que me era confiada ou solicitada. Quando só ou perdido em meus pensamentos, divagava ao sabor das reflexões, que se repetiam em minha mente, dia após dia, sem possibilidade de uma conclusão ou definição segura e indubitável.

            Dizem que a vida ensina, de um jeito ou outro.

            Acredito que um jeito seja bom e o outro ruim.

             Aprender do outro jeito significa apanhar, na carne e essência, com direito a cicatrizes. Estou aprendendo desse último jeito, o outro.

         Ano após ano, tenho tropeçado em meu próprio ego, tenho apanhado da vida, dos outros, tenho sido forçado a reconhecer limitações e fracassos. Tenho sido confrontado com enganos filosóficos, morais e outros que se perdem, em meio ao detalhamento dos procedimentos diários, mas não perdem em importância, porquanto reunidos, formam o caráter de nós todos. A cada golpe de consciência que me imponho, sinto o peso da responsabilidade, pertinente ao conhecimento, além da percepção da própria pequenez e desorientação sobre qual atitude ou caminho tomar.

            E, no fim de tudo, inevitavelmente, ainda permanece ela: a morte !

            Será que o inferno é tão infernizante assim ?

             Sei muito do que não fazer, mas bem pouco sobre o que fazer.

            Sei que devo ser bom, ajudar, viver bem, saber mais e me sentir seguro, confiante, a cada passo dado. Mas, acima de tudo, necessito ter ciência de tudo que me rodeia e envolve, tenho de raciocinar e sentir que a mente trabalha, simultânea e equivalentemente, com a essência mística.

             Quero sentir que fé e ciência estejam unas em torno de mim.

            E o tempo passa ...

            E sinto meu tempo diminuir, a cada dia desperdiçado.

            E não quero morrer!

            Mesmo que o instante de minha morte seja indolor e tranqüilizante, estarei dolorido e intranqüilo, ciente de não realizações, de más escolhas e da ausência de uma bagagem espiritual, que me credencie do lado de lá. Não aquela coisa amorfa que se prega em qualquer púlpito ou templo, mas a verdadeira e indefectível luminosidade, que transparece da fronte de qualquer homem de bem ou pessoa virtuosa, que vive pelo bem comum ou alheio. A bagagem que deve representar um verdadeiro passaporte para alguma dimensão paradisíaca e melhorada, onde se possa viver, talvez, a plenitude da equivalência irrestrita, sem a triste e violenta imposição de qualquer conceito moral tacanho, ou subserviência a valores ou leis injustas e escravizantes.

            Quero viver em paz e ser útil à humanidade, mesmo que a um bocadinho dela.

             Não acredito que, se houver continuidade da vida, após a transição fatídica, encontremos uma realidade tão infantil quanto inferno e paraíso.

          Acredito, por pura suposição empírica, que se houver a tal continuidade, ela seja extensão da vida que aqui levamos, com trabalho, família, amigos, lazer e otras cositas más, só que melhorada (se for pra cima) e piorada (se pra baixo). Creio que devem existir cidades astrais ou celestes, bem como núcleos que bem poderíamos chamar de infernais. Estas e aquelas reuniriam almas afins (nós mesmos), que partilhassem de idéias, ideais e tendências. Aliás, não seria ótimo se políticos corruptos e criminosos fossem reunidos em uma cidade ou região que abrigasse somente pessoas desse naipe e tendência? Gostaria de fazer um tour por lá, devidamente amparado por algum protetor, é claro, só para vê-los comendo o pão que o diabo amassou, um da mão do outro. O único problema a se observar seria o posicionamento de alguma cidade ou região celeste vizinha, que teria de se postar a uma distância segura de balas astrais perdidas.

            Não me importo de trabalhar do lado de lá, suando a camisola, desde que possa passear à noite, sem medo de assalto ou agressão, e de quebra, que possa comer uma bela pizza (inteira) sem engordar um grama sequer ou ter indigestão.

            Antes de chegar o momento complicado, porém, tenho de me sentir pronto.      

             Quero ter tempo de reparar erros e tentar ser alguém, perante a eternidade.

            E cumprir com os compromissos assumidos, mesmo que duvidosos.

            Mas mesmo após tudo resolvido, permanece um grande problema:

             Simplesmente, não quero morrer!

            E sei que não há como escapar dessa sina, que ninguém gosta de discutir.

            Morrerei, sem querer ! Sob protesto !

             E irei para onde a morte me levar (gostaria de ouvir alguém cantando: deixa a morte me levar. Morte leva eu!).

            Uma vez lá, porém, não vou querer voltar.

             Existirá a reencarnação?

             Se existir, com certeza passarei a afirmar: Não quero nascer!

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